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Obrigado, Papa Francisco

 


1️⃣ Já se passaram alguns dias desde o regresso do Papa Francisco à Casa do Pai. Penso que todos acreditamos que a morte de um Papa marca um momento profundo na vida da Igreja. Naturalmente, somos invadidos - estranho seria se assim não fosse - por sentimentos de tristeza e gratidão: tristeza pela perda de um homem que procurou, ao seu jeito, com simplicidade e coragem ser sinal do amor de Cristo por todos; gratidão porque, apesar das suas fragilidades e limites, Francisco serviu a Igreja com a generosidade de quem se sabe servo e não senhor. Fê-lo de um modo que qualifico de “coerente”, porque independentemente da sua visão de Igreja, era um homem de oração, que amou Cristo e O quis apresentar a todos, servindo-O nos mais frágeis.

2️⃣ Penso que este é também um tempo de reflexão. O Papa - qualquer um - é sucessor do Apóstolo Pedro, escolhido para confirmar os irmãos na fé. Mas o Papa continua a ser um homem e, por isso, não o podemos tratar como se fosse um Deus. O Papa é um homem de carne e osso, com virtudes e debilidades, como cada um de nós. O Papado é, por isso, uma realidade profundamente espiritual, sustentada pela graça de Deus, mas vivida na pobreza da condição humana. A história ensina-nos que houve papas virtuosos e papas cujas vidas deixaram muito a desejar. Apesar disso, a Igreja permaneceu. Não porque confiamos nos homens, mas porque confiamos que Cristo é fiel à Sua promessa: “As portas do Inferno não prevalecerão contra ela [a Igreja]” (Mt 16,18).

3️⃣ Uma das afirmações mais espiritualizadas que escutamos, nos dias de hoje, é que no Conclave é o próprio Espírito Santo - Deus - quem escolhe o Papa. Acerca disto, Bento XVI, ainda como cardeal, explicou que o Espírito Santo não impõe uma escolha no Conclave. Deus, em vez de controlar diretamente o processo, concede liberdade aos cardeais, sem deixar de acompanhar e orientar a decisão. Dizia o então Cardeal Ratzinger que “o papel do Espírito deveria ser entendido num sentido muito mais elástico; não que ele dite o candidato em quem cada um tem que votar. Provavelmente, a única certeza que Ele oferece é que a coisa não possa ser totalmente arruinada. Existem muitos exemplos de Papas que evidentemente o Espírito Santo não teria escolhido". O próprio Código de Direito Canónico esclarece a quem compete eleger o novo Papa: aos Cardeais da Santa Igreja Católica (nº 349) e não ao Espírito Santo. Por isso, cada um faz um juramento, com a mão a tocar no livro dos Evangelhos. Neste momento, os cardeais comprometem-se a rejeitar todas as influências externas e a agir unicamente guiados pela consciência e pelo bem da Igreja.

4️⃣ Neste tempo de transição, julgo fundamental recordar que o centro da nossa fé não é e não pode ser o Papa. Seguimos Cristo, não uma figura humana. Faço esta afirmação porque com alguma tristeza testemunhei, em muitas ocasiões, quem nos seus discursos (inclusive eclesiásticos) falasse mais daquilo que o Papa referiu do que dos ensinamentos de Cristo, procurando fazer com que os escritos do Papa, ainda que de forma não intencional, se tornasse na “Nova Bíblia” que deveria orientar os agir e o pensar de cada cristão. Por mais amado que seja — e é necessário que o seja —, o Papa é apenas um sinal, um servidor da unidade e da verdade que é Cristo. Quando, em tempos difíceis, algum papado se revelou um desastre aos olhos do mundo ou mesmo da Igreja, foi sempre a fidelidade de Deus que sustentou a própria Igreja. E assim continuará a ser.

5️⃣ Nestes últimos anos, muito se falou da necessidade de uma Igreja de portas abertas, de uma casa onde todos tenham lugar. E é verdade: a Igreja deve ser casa para todos. Mas há um perigo subtil neste discurso se não for completado: uma casa de portas abertas exige também uma decisão pessoal de entrar e permanecer. Sem compromisso e sem conversão, a Igreja corre o risco de ser vista apenas como uma casa de todos, mas não a “residência habitual”, antes uma “casa de férias” — um lugar onde se entra ocasionalmente, sem responsabilidade, sem compromisso, sem pertença real. Ora, a Igreja é a nossa casa, mas é também escola de santidade, hospital de pecadores e campo de missão. Não é um local de passagem, é um lugar de pertença viva.

6️⃣ A morte de um Papa e a eleição de um novo não são momentos para agitação nem para politização. Não devemos transformar o Conclave num campo de batalha entre progressistas e conservadores, entre preferências humanas e projetos ideológicos. A Igreja não é um parlamento, por mais que claramente por vezes alguns se insurjam com este tipo de discurso. Rezemos, sim, intensamente, para que o Espírito Santo conduza os cardeais, e para que nos seja dado um pastor segundo o Coração de Deus. Um homem de fé, que tenha a coragem de colocar Cristo em primeiro lugar, como procuraram fazer Francisco, Bento XVI, João Paulo II e tantos outros antes deles, com a Graça de Deus e as limitações próprias de cada um.

7️⃣ Por fim, este momento leva-me também a uma reflexão de fundo: que Igreja somos e que Igreja queremos ser? Será que a Igreja é apenas como uma associação humanitária que também apresenta Deus? Ou reconhecemos que a Igreja é, antes de tudo, uma realidade de fé, nascida do coração trespassado de Cristo, que precisamente por ser de Deus se dedica a cuidar dos mais frágeis? É urgente reafirmar esta verdade: a Igreja não nasce da generosidade humana, mas da iniciativa divina. E é a partir da fé que se constrói o serviço da caridade, não o contrário. Se perdermos esta raiz, tudo o resto se desmorona.

8️⃣ A morte do Papa Francisco não é o fim de nada. É mais uma etapa na longa história de fidelidade de Deus para com o seu povo. A nossa missão agora é rezar, confiar e manter o olhar fixo em Cristo. A Ele pertencemos. É por Ele que vivemos. É n’Ele que esperamos.

9️⃣ Que o Senhor conceda descanso eterno ao Papa Francisco e nos dê, segundo a sua vontade, um novo sucessor de Pedro que seja pastor segundo o seu Coração. E que cada um de nós, no meio desta mudança, permaneça firme na única certeza que nunca passa: Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre (Heb 13,8).


✝️ Obrigado, Papa Francisco!

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